Estreia nesta quinta-feira (7) nos cinemas brasileiros o filme ‘Ainda estou aqui’, do diretor Walter Salles, com a narração da história de Eunice Paiva, ativista pelo reconhecimento das vítimas da ditadura militar. Nas telas, famílias brasileiras poderão conhecer a saga da viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, preso pelo Estado em janeiro de 1971. Desde então, o político fora considerado desparecido político até, mais de 40 anos depois, ter sua morte confirmada pela Comissão Nacional da Verdade.
Essa história, que em 2024 ganha repercussão internacional, se cruza com os trabalhos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), responsável por criar mecanismos que impeçam novos períodos sombrios a exemplo da ditadura, quando familiares foram alijados de seus direitos desde o acesso à informação até o de sepultar seus mortos com dignidade.
Criada em 1995, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) atende às reivindicações das famílias de desaparecidos políticos, a exemplo de Eunice Paiva, encarnada no filme pela atriz Fernanda Torres. Relato do filho de Eunice, Marcelo Rubens Paiva, no livro homônimo publicado em 2015, que ora chega aos cinemas, dimensiona o drama vivido pelos familiares. “Depois de vinte e cinco anos, minha mãe pôde enfim se considerar viúva, mexer em aplicações bancárias do meu pai, bens, fazer um inventário”, denuncia.
Após ter sido encerrada no apagar das luzes pela gestão 2019-2022, a CEMDP, que tem apoio administrativo do MDHC, foi reaberta pela atual gestão a fim de garantir o direito à memória, à elucidação da verdade e à reparação a familiares de pessoas vitimadas pela ditadura e demais reivindicações sugeridas pela Comissão Nacional da Verdade em 2014.
Entre elas, o coordenador-geral de Apoio à Comissão, Caio Cateb, rememora a fala de Marcelo no livro sobre a importância da emissão do atestado de óbito como um direito dos familiares. “Se você parar para pensar que, se a pessoa está desaparecida, logo ela não tem uma certidão de óbito, então, se a pessoa morreu, a família precisa abrir um processo de inventário e não tinha um documento de óbito sobre aquelas pessoas”, contextualiza.
Ao detalhar as funções do setor, Caio reforça novamente o relato do livro ao reconhecer a luta da sociedade civil e dos familiares – o que resultou na redação da lei. “Ela é fruto dessa luta e tem, entre as suas atribuições, dois eixos principais: de reconhecer as pessoas desaparecidas enquanto mortas e o de reparação com o pagamento de indenização para todas as famílias”, explica.
Composta por sete membros, a comissão completa três décadas de existência no próximo ano e pretende, além das entregas das certidões de óbito retificadas, intensificar as retomadas dos trabalhos de busca e identificação dos desaparecidos políticos. Um dos casos emblemáticos desse trabalho foi o processo de análise e identificação de restos mortais do cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde 1.049 ossadas foram retiradas de uma vala do cemitério do bairro de Perus.
Eugênia Gonzaga, procuradora regional da República e presidente da CEMDP, espera com a história contada no filme uma contribuição para a luta e a visibilidade pela preservação da memória na sociedade, inclusive das autoridades do judiciário brasileiro. “A arte é a melhor forma possível de explicar, de sensibilizar as pessoas que não fazem ideia do que aconteceu no passado sobre a gravidade desse período”, enfatiza.
Memórias coletivas
Paula Franco, pesquisadora e coordenadora-geral de Políticas de Memória e Verdade do MDHC, relembra estudos fundamentados na ciência política que apontam o prejuízo ao não falar sobre o passado ou não criminalizar pessoas que foram violentas. “É por isso que existe uma percepção de que o emprego de políticas públicas visando à memória, construídas a partir do acesso à verdade, têm o potencial de inibir, ou, de fato, barrar novas ondas de violações sistemáticas, porque justamente o Estado vai transitando para um novo lugar”, pontua.
A gestora tem expectativas positivas com a estreia do filme e com o debate público em cima da temática. De acordo com Franco, o longa tem um alinhamento direto com as políticas públicas que norteiam os trabalhos do MDHC de encontrar meios para que as investigações sobre o passado sejam cada vez mais completas, abarquem mais grupos e cheguem a mais pessoas.
Para a pesquisadora, os desafios da luta por memória e facilitação de acesso à verdade é uma realidade para qualquer país. Essa realidade, no entanto, não poderá ser superada sem relatos sobre o passado, calcados em uma narrativa realista, resultado de investigação, com documentações e testemunhas, a fim de construir uma memória social. “A memória carrega uma possibilidade pedagógica, de aprendizado. A gente aprende justamente porque a gente tem memória. Passamos as histórias de geração em geração porque a gente tem memória”, frisa.
Caio também acredita nessa possibilidade pedagógica e de sensibilização amplificada através da arte. “É uma forma de sensibilizar, mas também de aproximar e humanizar. As pessoas acabam percebendo, nesse tipo de conteúdo, o quão próximo isso é de nós. Quando você aproxima uma história dessas de uma mãe e de seus filhos, você está vendo o impacto disso na vida de uma família e vai encontrar histórias parecidas de pessoas que têm algum marco de uma violência ao seu redor e que impactaram as relações familiares”, relaciona.
Assim como o livro, o filme ‘Ainda estou aqui’ relata violações de direitos a partir de um seio familiar. Para Paula, a projeção da história tem o potencial de conectar, estabelecer pontes e aproximar o debate das novas gerações. “Ela não é [apenas] uma história do Rubens Paiva, de um sujeito que foi perseguido, impactado pela violência. Ela é a história de muitas pessoas. E a gente vai perceber também que essa violência, ocorrida ali na década de 1970, também pode dialogar com violências que ocorreram depois e impactaram famílias”, conclui Paula, refletindo sobre o trabalho desenvolvido pela CEMDP em diálogo com a demanda da sociedade civil para efetivar os direitos à memória e à verdade no país.