O samba costuma ser definido como um gênero musical e coreográfico. A definição, certamente correta, pode ser bastante alargada. Mais do que música e dança, o samba é também um sistema de organização do mundo. Em torno do samba as pessoas cantam, dançam, comem, bebem, amam, brincam, festejam, rezam, louvam os ancestrais, constroem laços de identidade e redes de proteção social.
É da fonte da cultura comunitária do samba que surge “Sagrado”, o novo trabalho de Diogo Nogueira. Pelas oito faixas do álbum, circulam heranças dos batuques ancestrais que, saídos das praias africanas, se redefinem nos terreiros, esquinas, morros e calçadas do Brasil para celebrar a vida como experiência de alegria e liberdade.
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Derivado das culturas da diáspora africana, o samba está ancorado em dois princípios fundamentais: a percepção de que entre o sagrado e o profano não existe oposição, mas integração constante, e a certeza de que a vida só faz sentido quando é compartilhada. A cerveja gelada, o tempero do feijão, o sorriso no rosto da cabrocha, os versos do partido, as brincadeiras das crianças enquanto o coro come na roda, refletem a integração entre o material e o espiritual, o presente e o passado, a tradição e o futuro.
“A Boa do Samba (Coisa Boa)”, parceria de Junior Dom, Daniel de Oliveira e Alexandre Chacrinha, segue a trilha aberta e ressalta o papel do samba como elemento aglutinador. Entre o churrasco com as amizades, a cerveja gelada e o domingo de sol, o clamor pela educação mostra que sambar também é uma maneira de levantar a bandeira da cidadania e da justiça social.
“No Som da Vizinhança”, de Rodrigo Leite e Cauique, retrata em seus versos a relação íntima que o samba tem com a cultura dos subúrbios do Rio de Janeiro, aquela que Diogo Nogueira, oriundo de uma família em que o cotidiano era celebrado com batuque e festa, conheceu desde garoto.
“Ciência da Paz”, de Thiago da Serrinha, é um clamor pela liberdade de crença e culto, diante dos crescentes casos de intolerância e racismo contra as religiosidades brasileiras de matrizes afro-indígenas. Cada vez mais próximo do sagrado que se manifesta na força dos guias e orixás, Diogo Nogueira conecta o samba à luta necessária e urgente pelo direito que cada pessoa tem de se relacionar com o sagrado da forma que considerar mais conveniente.
Em “Festa no gueto”, do trio Rafael Delgado, Caca Nunes e Carlinhos Moreno, o sentido do samba como uma experiência de compartilhamento da vida em comunidade é mais uma vez ressaltado. Entre a caipirinha que acompanha o feijão, a exaltação da amizade como valor fundamental da vida, a festa que dribla os perrengues do cotidiano e a dimensão sagrada em que o canto é reza, prevalece a alegria subversiva que o samba traz.
“Partideiro Particular”, de Thiago da Serrinha, é uma macumba de amor. O refrão evoca os tambores dos candomblés e umbandas e chama os versos que, na estrutura dos partidos tradicionais, traz o clima dos romances que surgem nas rodas espalhadas pelos quintais e terreiros da cidade. É pra levar na palma da mão e abrir o sorriso.
“À moda antiga”, de Arlindinho em parceria com Marcelinho Moreira e Márcio Alexandre, é um samba que fala do amor que vai além das rodas. Se a faixa anterior traz o clima do flerte insinuado no partido alto, aqui temos a exaltação romântica aos amores duradouros, daqueles que ultrapassam os limites do tempo e se perpetuam nos versos dos poetas e nas melodias mais sublimes.
“Meu Samba Anda Por Aí”, parceria entre João Nogueira e Paulo Valdez (filho da Divina Elizeth Cardoso), é a faixa que, ao fechar o álbum, aponta para o recomeço e o encontro com a ancestralidade. A voz do pai, João Nogueira, abre a canção em rara gravação caseira e se encontra com a voz do filho, Diogo, para afirmar que só é ancestral aquilo que é contemporâneo e só está morto aquele que não é mais lembrado. Enquanto houver memória, lembrança e rito, a vida permanece.
As rodas de candomblés sempre giram no sentido anti-horário. Ao subverter simbolicamente o tempo linear, elas afirmam a necessidade do reencontro constante como o passado para que o presente faça sentido e o futuro possa ser construído em uma perspectiva mais generosa. Ao reverenciar neste álbum a herança do pai, rememorar uma infância festeira de raízes suburbanas e celebrar a alegria da vida compartilhada no samba, Diogo Nogueira bate cabeça para o passado, dialoga com o presente e lança o seu canto – como flecha certeira de Oxóssi – em direção às novas gerações.
O samba permanece porque tem a coragem de se transformar e só se transforma porque tem a sabedoria de permanecer. Essa é a dimensão de tudo que é “Sagrado”.