“Comida sem veneno”, dizia o título da carta enviada por um casal de classe média da capital fluminense ao Jornal do Brasil, em 12 de janeiro de 1979. O texto convocava uma reação ao uso corrente de agrotóxicos no combate às pragas nas lavouras do Estado do Rio de Janeiro. Naquela época, notícias sobre intoxicação e mortes de agricultores por substâncias químicas que prometiam maior produção em menos tempo revelavam os omitidos efeitos danosos da modernização do setor agrícola.
“Os preços estão caros, e a comida morta ou contaminada. Como não parece mesmo haver qualquer solução oficial à vista, só resta nos organizarmos para produzir, distribuir e consumir alimentos frescos, puros e baratos. Essa carta é uma semente”, escreveram Joaquim Moura e Lígia Lara. A convocação surgiu efeito: cerca de 300 leitores responderam ao chamado e enviaram cartas para o jornal. Mais adiante, boa parte deles se reuniu e fundou, naquele mesmo ano, a Cooperativa Mista de Produtores e Consumidores de Alimentos, Ideias e Soluções Naturais (Coonatura), passo pioneiro no movimento agroecológico no Estado do Rio de Janeiro.
O encontro de múltiplos atores da cidade e do campo, como agrônomos, ambientalistas, consumidores e agricultores, marcou a consolidação da agricultura orgânica no Rio de Janeiro, mostra a historiadora Júlia Lima Gorges Brandão em tese sobre o tema, defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). O estudo analisa o período entre 1970 e 2010, que abrange desde as primeiras experiências em agroecologia – ou seja, uma agricultura ambientalmente adequada, produtiva e economicamente viável – à criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas (CCFO), fundamental para a ampliação dos espaços de comercialização da agricultura orgânica fluminense.
Orientado por Dominichi Miranda de Sá, o estudo relaciona o movimento agroecológico ao cenário nacional e internacional de ideias que questionavam o padrão agrícola hegemônico, calcado na mudança de técnicas de produção, por meio do uso de agrotóxicos, fertilizantes, irrigação, sementes geneticamente modificadas e concessão de crédito agrícola. Criado e disseminado pelos Estados Unidos, esse modelo para o desenvolvimento do campo ficou conhecido como “Revolução Verde”.
“Demonstro como, historicamente, o Brasil passou por um processo de transformação agrícola a partir da segunda metade do século 20, com pouca ou nenhuma preocupação com a questão ambiental, e que trouxe consequências que refletem no cenário atual e ajudam a compreendermos, por exemplo, como nosso país é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo”, diz Júlia, acrescentando que a história da expansão deste modelo “é também a história da degradação do Cerrado e da Amazônia, da extrema violência no campo e do desaparecimento de séries de sociedades indígenas”. Dados da Agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) revelam que, em 2022, o Brasil consumiu mais agrotóxicos em suas lavouras do que os Estados Unidos e a China juntos.
Posição de resistência é inerente ao conceito de agroecologia
Na tese, a historiadora analisa características e consequências da disseminação, no Brasil, dos pacotes tecnológicos dos Estados Unidos. Justificados como ações de modernização agrícola necessárias para acabar com a fome, especialmente nos países considerados mais pobres, eles orientaram políticas públicas de incentivo ao uso de agrotóxicos, como o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas. Em curso durante o período de 1975 a 1979, em plena ditadura civil-militar, a iniciativa foi de “grande relevância para o estabelecimento do modelo agroindustrial brasileiro” e ajudou a impulsionar a indústria de agrotóxicos.
Júlia mostra também como a agroecologia se consolidou no Brasil, a partir dos fins dos anos 1980 e início da década de 1990, enquanto um movimento político, social e científico de resistência ao modelo hegemônico. “O viés político e o posicionamento de resistência são inerentes ao conceito de agroecologia no Brasil. Desde a sua institucionalização, ela segue em posição de resistência. Enquanto escolhas políticas permanecerem privilegiando o modelo agroexportador, latifundiário, excludente e que expõe populações vulneráveis aos mais diversos riscos e problemas de ordem social, econômica e ambiental, a agroecologia seguirá demonstrando que outras escolhas são possíveis e viáveis e que resistir seguirá sendo fundamental”, diz a historiadora, que em seu estudo abordou ainda o processo de criação do Partido Verde e os debates em torno da temática ambiental na formulação da Constituição de 1988.
Além de defender um padrão de cultivo sem agrotóxicos, atores envolvidos na institucionalização da agroecologia buscavam outras mudanças no campo, relacionadas à realidade social e ambiental dos agricultores e agricultoras, assim como a qualidade alimentar dos consumidores. Segundo Júlia, fizeram parte desse esforço de disseminação instituições de ensino e pesquisa, como a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro (Pesagro) e a Embrapa- Agrobiologia.
Mulheres foram pioneiras na produção sem pesticidas
Foi no contexto do lento processo de redemocratização no país, iniciado em 1979, com a lei de anistia aos acusados de crimes políticos, que surgiu a Coonatura, primeira cooperativa para produzir e fornecer alimentos sem aditivos químicos no Estado do Rio. O chamado feito por carta publicada no Jornal do Brasil foi atendido, especialmente, por uma juventude urbana e de classe média, atenta a questões ambientais e alimentares e que se identificava com o ideário ecológico. Eram pessoas que estavam por dentro das teorias sobre meio ambiente e sustentabilidade, mas distantes da prática agrícola.
Para vencer essa distância e dar início ao cultivo de produtos orgânicos ou agroecológicos, então chamados de “naturais”, um dos integrantes do grupo, Paulo Aguinaga, decidiu partir para Brejal, área rural de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, onde existiam pequenas propriedades agrícolas ocupadas, principalmente, pelo cultivo de verduras e legumes. O desafio era convencer os agricultores a produzir sem agrotóxicos.
Não foi uma missão fácil, diga-se de passagem. Ao contrário do que ocorrera em outras regiões do país, com vasta inserção de maquinários agrícolas, na serra fluminense a grande transformação se deu nas práticas agrícolas, com a adoção de agrotóxicos e de adubos químicos. “Muitos agricultores se viram obrigados a aderir a tais métodos, pois a cada dia perdiam sua competitividade nos mercados locais e regionais perante a nova lógica de mercado a que eram inseridos involuntariamente naquele momento”. Segundo Júlia, a virada de chave a favor da agroecologia se deu a partir das mulheres da região.
“Elas já possuíam suas hortas caseiras e, enquanto seus maridos, pais e filhos, produziam convencionalmente, elas não utilizavam nada. Foram as primeiras a aderir à ideia e a fornecer suas pequenas produções para a comercialização na Coonatura. Mais tarde, vendo que os produtos possuíam um maior valor agregado e que havia público consumidor, muitos homens decidiram parar de usar produtos químicos e vender para a mesma cooperativa”, conta a história sobre Brejal, região que acabou se tornando referência na produção de orgânicos em todo o estado.
No PPGHCS, estudos unem história ambiental, das ciências e da saúde
Para realizar a pesquisa, a historiadora analisou documentos de diversas naturezas, entre os quais, os contidos no Dossiê Programa Nacional de Defensivos Agrícolas, pertencente ao fundo Paulo Barragat, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz. Também usou como fonte material jornalístico e entrevistas que fez com atores inseridos na consolidação da agricultura orgânica fluminense, como agricultores, agrônomos, ambientalistas e consumidores. Júlia observa que o escopo da história agroambiental tem se ampliando, com a inclusão de pesquisas sobre alimentos, tecnologias e processos produtivos. Cita, em especial, investigações realizadas no PPGHCS, que unem história ambiental, das ciências e da saúde para compreender as transformações na agricultura brasileira.
O tema investigado na tese está intimamente ligado à vida pessoal de Júlia. Filha de pequenos agricultores, descentes de alemães, que se estabeleceram em Petrópolis, ela conta que nasceu e cresceu na região pioneira na produção agroecológica no Estado. “Lembro-me da imagem de meu pai com o pulverizador nas costas e o seu semblante visivelmente exausto, das queixas físicas decorrentes da lida no campo: ardência e vermelhidão nos olhos, dores estomacais, falta de ar; e das dores emocionais também”. Após anos enfrentando as consequências do novo padrão produtivo, o pai começou a trabalhar com agricultura orgânica, que se mostrou muito semelhante às técnicas agrícolas tradicionais adotadas pela família no passado. Há quase 20 anos, eles têm uma barraca na Feira Orgânica da Glória, o primeiro espaço público de venda direta de alimentos orgânicos na cidade do Rio de Janeiro:
“No meu caso, foram 16 anos frequentando a Feira Orgânica da Glória. Lá terminei o ensino fundamental, o ensino médio, a graduação, o mestrado e passei, pelo menos, a metade do doutorado. Durante todo esse tempo, pude acompanhar os desafios, as obrigações, as vantagens, desvantagens, a transição de diversos agricultores da agricultura convencional para a orgânica, o público-alvo, a popularização da prática para o público em geral. Por outro lado, minha trajetória enquanto historiadora ambiental me levou a buscar a historicidade daquilo que já fazia parte do meu cotidiano, mas que me gerava muitas questões em relação às suas origens e processo de consolidação”.
Embora tenha havia uma intensificação de políticas públicas efetivas em favor da agroecologia, Júlia avalia que um dos principais objetivos do movimento, ou seja, o rompimento com o modelo agrícola brasileiro, não foi alcançado. Segundo a historiadora, a agricultura orgânica permanece “um privilégio de poucos cidadãos brasileiros, sobretudo os mais abastados”, enquanto os demais consomem produtos com altas doses substâncias químicas. Dados recentes citados na tese revelam que, de 2019 a 2022, foram aprovados no país mais de 1.600 novos agrotóxicos. Quase metade (45%) de todos os pesticidas vendidos no Brasil foram registrados nesse período, que coincide com a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Fonte: Agência GOV